Crônica: um catador de lixo sonhador e utópico
- - Por Humberto Corrêa* - -
Em nossa sociedade atual, grande parte das discussões sobre o futuro refere-se a projeções tecnológicas. Nela não está incluída a maioria das pessoas sem responsabilidade de acesso a essas tecnologias. Para o filósofo norte americano Richard Rorty, o mais assustador do futuro humano é que não existem projeções convincentes de aumento geral da igualdade.
Ele se chama José Antonio, vive na nossa comunidade, e viaja todos os dias com o seu pequeno caminhão, recolhendo lixo reciclável pela cidade. Seu José chegou no município vindo de Mafra, onde era servente de pedreiro. É uma pessoa simples, de hábitos simples, não fala muito e o que fala não é muito correto – tem problema em se expressar, fica nervoso. Mas pensa mais do que fala na realidade. É um bom homem, só fala quando perguntado, sua mão é suja e calejada, seu rosto e braços queimados pelo sol, pela clara, nunca usou bronzeador. Para ele, bronzeador é coisa de gente fresca.
Tem 61 anos, braços fortes. Bastante senil. E se orgulha, nunca bebeu cerveja ou cachaça, roubou ou ficou devendo para alguém.
Ao chegar aqui, tentou trabalhar na construção civil, mas não deu muito certo. Devido à doença da sua esposa. Ela tem trombose em uma das pernas, mas já está melhor. Na época, devido à doença da esposa, ele mais faltava do que trabalhava. Então, resolveu realizar o seu sonho, ser motorista, ser caminhoneiro. Ah! Agora ele realmente acertou sua profissão e seu sonho. Foi para a frente de uma empresa de transporte, criando coragem para pedir emprego. Mas nunca entrou, ficava ali, só observando. Não tinha carteira de motorista e nem dinheiro para fazê-la. De tanto ficar próximo ao portão, era chamado de doido, e ganhou um apelido de “Só Olha”, pois só ficava próximo ao portão, olhando.
Então virou catador de lixo. Dirige uma, como diz ele, grande carreta carro – na qual coloca o material reciclado, recolhido nas lojas, lixeiras, calçadas e casas.
Mas o que mais chama atenção na sua grande carreta é uma pequena bandeira do Brasil, colocada na parte de trás do seu caminhão, como gosta de chamar o seu possante veículo.
Diz ele: “Felipe Massa é fraco. Eu, com meus braços, corro mais que ele. Sempre fico em primeiro. Chego antes que os outros catadores para pegar os materiais nos locais combinados”.
Quando comecei a perguntar sobre sua vida, seu José ficou meio desconfiado. Daí mudei de assunto e fiz a célebre pergunta, aquela que amansa até touro. E aliviaria a minha curiosidade: “Por que o senhor usa essa bandeira no seu caminhão?”.
E ele: “Ah... esta bandeira tem história, moço. Nossa República foi feita por essa bandeira em 15 de novembro, sabe moço. Por essa bandeira nós luta, nós briga, nós faz guerra, nós defende, até o último homem. Isso eu aprendi quando era criança, na escola”.
Hoje o seu José nos mostra um Brasil que muitos não conseguem ver. Que a sociedade é feita de vida e de estrutura.
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“Mas e aonde você a encontrou?”.
“Encontrei no lixo, sim, no lixo de uma casa. Depois da Copa, que nós perdemos. Sabe, as pessoas não têm mais coração para amar o nosso país. Eles podiam ter guardado. Nem que fosse para a Copa do Brasil. Essa que vai acontecer. Lá em São Paulo, Rio de Janeiro, nas cidades grandes. Aqui em São Bento não, mas é aqui, no Brasil”.
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“Mas o senhor, com o seu caminhão, não vai viajar para as grandes cidades ver a Copa?”.
(Risadas) “Moço, o motor do meu caminhão já tá meio fraco, coração doente. Agora, se eu tivesse um caminhão, eu ia e levava a minha esposa. Nós iríamos viajar bastante, dormir na cabine, almoçar nos restaurante, andar alto mesmo. Alto nas alturas, de felicidade. Não de velocidade”.
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“O que deixa o senhor mais chateado?”.
“Esses moços bem novos – mas tem alguns mais velhos – que não dão valor para a gente. Esses dias eu ia para casa, eles me pararam e jogaram o material do meu caminhão no chão. Saíram rindo. São tudo nariz de soberba. Acham que eu não tenho família. Sabe, criei três filhos e cuidei da minha esposa, e estou lutando para me aposentar. Já tenho advogado, e de graça, um amigo me ajudou a arrumar. Doutor gente boa. Sempre me cumprimenta. Cato o lixo na frente do seu escritório. Mas ele falou que talvez consiga. Mas não tenho carteira assinada, faz anos. Será que o governo me paga? Mesmo sem ter trabalhado muito”.
Seu José é um exemplo de amante do nosso Brasil, de sonhador, e que o homem é feito de utopias. Sendo ou não caminhoneiro viajando pelo nosso Brasil, ele defende a sua bandeira, a nossa bandeira brasileira, e nos mostra que a cada momento a pessoa humana se organiza e refaz o seu mundo, mas também rejeita o mundo de ontem por um mundo novo, o futuro.
Nesse sentido, as utopias são muito importantes na história humana, sentindo-se na tensão entre opressão e liberdade, como força que impele à superação das diferentes formas de negação da dignidade humana: escravidão, exploração do trabalho, abuso de crianças, viver do lixo, para o lixo... São situações inaceitáveis para a nossa utopia fundamental.
A esperança não pode ser projeção para o futuro. O exercício da utopia nos faz olhar em direção a uma sociedade justa, apesar de sempre fazer morada em outro lugar, ou lugar nenhum, o sentido grego de utopos. A utopia não se opõe à realidade, antes pertence a ela, porque esta não é feita apenas por aquilo que acontece, mas também por aquilo que pode ser um dia.
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“Quero a utopia, quero tudo e mais. Quero felicidade, nos olhos de um pai. Quero alegria, muita gente feliz, quero que a justiça reine em meu país. (Milton Nascimento, em “Coração Civil”).
*Lic/Bacharel em História; pós graduado em História do Brasil e Ciências da Religião.